16.12.10

"Até que a morte nos separe." Lembra-se de olhar para Carla, de sorriso aberto, vestida de branco e dizer esta frase (batida).

Até que a morte nos separe, namoraram durante cinco anos, casaram quando ela engravidou. Teria sido uma menina, mas uma complicação no quinto mês de gravidez levou ao aborto. Terá sido esse acontecimento a abortar também o seu casamento, o amor deles? Não sabe afirmar com certeza. A verdade é que o sexo se tornou mais ocasional, o prazer transformou-se em enfado e, pouco a pouco, o ressentimento passou a ocupar o lugar do amor que cada um sentia um pelo outro.

Não sabe explicar porque é que continuam juntos. Já nada os aproxima, falam pouco um com o outro. Vivem juntos, mas na realidade longe um do outro.

Quando descobriu que Carla o traía com um colega do trabalho não estranhou, ainda que a descoberta o tenha magoado. "Não foi com isto que sonhei." Como é que passamos dos sonhos à triste realidade? "Porque não nos divorciamos?" Durante as primeiras semanas, após a descoberta do caso, esperou que ela lhe pedisse o divórcio, que lhe dissesse que tudo tinha terminado, que encontrara outra pessoa. Esperou... Ainda que nada a prendesse a ele, ainda que o traísse, ela nada disse, ele esperou, sem nada dizer, também.

Enfureceu-se, quando percebeu que alguns amigos sabiam do caso. Pensou em confrontá-la. Três meses depois da descoberta, começou a fazer planos para que a morte realmente os separasse. Passou algumas horas na internet, pesquisou casos reais, tentando perceber o que correra mal em alguns crimes que terminaram com a prisão do marido assassino.

Elaborou um plano.

Um dia confrontou a mulher com o arrefecimento do casamento, chorou, "foi com isto que sonhaste"? Pediu-lhe uma segunda chance, não mereceriam uma segunda hipótese? Queria ser feliz com ela.

Marcaram três dias de férias, mais o fim-de-semana, cinco dias só para eles. Escolheram uma ilha, no meio do Atlântico, longe de conhecidos, uma outra língua, preços especiais de época baixa, clima temperado.

A escolha, que partira dele, era um sonho antigo dela. Ele já estudara percursos, caminhos, locais a conhecer, perigos possíveis. A ilha era conhecida pela sua beleza natural, mas ao longo dos últimos anos alguns turistas mais afoitos tinham conhecido a morte. Planeara três ou quatro hipóteses de a matar. Era uma questão de tempo.

Chegaram ao aeroporto pelas 11h. Ao meio-dia entravam no Hotel, só teriam carro no dia seguinte.

Carla parecia querer dar uma oportunidade ao casamento, nos dias que antecederam a viagem, passaram algum tempo falando do aborto, nunca tinham falado muito sobre o assunto, de como ela se afastara, dos porquês, de como podiam tentar recomeçar.

No quarto de hotel, arrumaram a roupa. Ele deitou-se na cama, esperando que ela acabasse de se arranjar para saírem. Ela saíu da casa de banho, com um conjunto de lingerie novo. Fizeram amor. Tomaram banho juntos e voltaram para a cama. Jantaram no quarto. Depois, ela contou-lhe, a medo, do caso com o colega de trabalho. Fê-lo com sinceridade, mostrou-se arrependida e disse-lhe que fora a conversa que tinham tido e a posterior decisão conjunta de lutar pelo casamento que a tinham feito mudado de ideias. Sem essa conversa, teria saído de casa na semana seguinte.

Ele ficou ali, embasbacado, não com as novidades, mas com o volte-face. Ela parecia genuinamente incomodada com a sua atitude, reconheceu, pela primeira vez em meses, a mulher por que se apaixonara e com que casara.

Disse-lhe que a perdoava, escondeu-lhe que sabia, e prometeu-lhe que juntos dariam a volta por cima.

No dia seguinte, passearam pela ilha, ele ia pensando no planeado, envergonhado, mas indeciso.

O terceiro dia acordou enevoado, fizeram um pequeno passeio de barco, até umas ilhotas ao largo da ilha mãe.

O cansaço físico não os impedia de voltar a encontrar-se, à noite, nos braços um do outro. Era a lua de mel que nunca tinham tido.

No quarto dia, foram até à montanha mais alta da ilha. A estrada era íngreme, a vista deslumbrante. Quando chegaram ao cume, o nevoeiro impedia-os de ver o que estava abaixo, chovia e não se via vivalma. Eram oito da manhã, tinham saído cedíssimo do hotel, num dos miradouros, João pensou no planeado, era um local perfeito, que colocara de parte pela presença habitual de turistas e vendedores. Ela estava em cima do muro, ele chegou-se por trás e colocou os braços à sua cintura. "Cuidado, não caias."

Desceram a montanha, visitaram duas ou três terreolas, no vale, e partiram em direcção a uma praias desertas, promessa do gerente do hotel.

A praia era lindíssima, o tempo melhorara e ele aventurou-se na água. Passaram o resto da tarde ali. Lancharam perto da praia.

No caminho para o hotel, ela pediu-lhe para pararem junto à estrada. Anoitecia, o sol punha-se lentamente, lá ao fundo, no mar alto.

Sentaram-se, com cuidado, na parede que limitava a estrada da escarpa. Abaixo deles, uma vertigem escarpada. Olharam juntos o anoitecer, ele apertava-a, beijou-lhe a testa.

"Voltamos?", perguntou-lhe já quase na penumbra. Andando já na direcção do carro, ela dera por falta da mala, colocara-a do outro lado do muro, encostada a este. Voltaram, ele apanhou a mala e colocou-se em cima do muro, de costas para ela, "não se vê nada".

 

Os últimos dias tinham sido difíceis para ela. Voltara a sentir prazer em estar com o marido. Ainda o amava? Começava a acreditar novamente que sim. Aceitara a viagem como uma dupla oportunidade,poderiam tentar reatar o casamento, algo em que não tinha muita esperança, mas planeara a sua morte. Contara-lhe do seu caso, esperando fúria, dor, algum tipo de reacção, não antecipara o perdão. Pouco a pouco, fora-se habituando à ideia de continuarem juntos. Mas, no seu inconsciente tinha medo, de voltar tudo à normalidade abjecta do passado recente. Tinha medo dos silêncios que habitaram a sua casa durante quase todo o seu casamento, tinha medo de que esta promessa fosse outra vez ultrapassada. A felicidade entre eles tinha sido uma promessa vã.

"não se vê nada" Ela via, mas era como se não visse. O futuro era uma bifurcação e ela temia que as escolhas fossem novamente as erradas. Num ataque de fúria, empurrou-o, escarpa abaixo.

 

 

publicado por wherewego às 11:50

11.01.10
Acordo.
Sou vencido pela necessidade de me levantar da cama. Passo pelo móvel, onde estão algumas fotos da juventude. Constato mentalmente as mudanças ocorridas, primeiro, as físicas, aquelas que saltam à vista. O peso, a altura, as olheiras, o cabelo, a barba.

Sento-me à secretária, com o monitor do computador à frente. Entre e-mails e redes sociais, lembrei-me das horas passadas a conversar, das cartas escritas, dos telefonemas para casa dos amigos (e amigas).
Hoje, com um toque ou dois do rato, vejo caras que não via há muito tempo, gente que há 20 anos atrás ou não veria mais ou uma ou duas vezes na vida, quanto muito.

As memórias vêm à minha mente. Encontros combinados, sdesencontros, ídas ao cinema. Sair do barco e andar durante uma hora, descer das Amoreiras aos barcos, subir a pé dos barcos ao Campo Pequeno -  às vezes para dizer olá, estar um pouco com determinada pessoa. Penso como estupidamente nos metíamos dentro duma sala escura, a ver um filme, esquecendo a possibilidade de falar. Cada um ia para a sua casa, e passávamos meses sem contacto físico, um telefonema aqui, uma carta acolá.

Hoje não. Consigo descobrir gente esquecida por mim até há um clique atrás. Deixo uma frase oca aqui e ali. Falta-me o contacto, o tempo, o falar, o ver.
publicado por wherewego às 11:54

11.11.09
Ensurdecido pelo som que saía dos phones, ia andando pelos corredores da faculdade.
De repente, viu um sorriso. Sorriso maior que o dia, natural, não forçado, silencioso. Um sorriso que iluminou a cara a que pertencia, tornando a criatura de Deus mais bela do que a julgava poder ser.
pumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpumpum
Podia ser o som do coração, podia, mas não era. Nestas alturas um narrador tem dificuldades em explicitar da forma mais correcta aquilo que quer transmitir.

O som que saía do Leitor de MP3 era o menos adequado a esta situação, certamente que nunca seria utilizado numa cena de amor à primeira vista, se é que é disso que se trata aqui.
O pum pum pum era uma faixa de death metal, pesadíssima, com sons gutorais em quase cada segundo quadrado, uns riffs brutais e quem ouvia isto era um jovem de camisa ao quadrados, calças de bombazina, sapatos de vela e, no momento, de ar atarantado e fixo. Fixo nela.
Ora, como todos sabemos se fixamos o olhar em alguém há um 7º ou 10º sentido que faz com que a pessoa volte, por sua vez, o seu olhar em nós. Foi isso que aconteceu.

O ar atarantado deu a sua vez a uma postura nervosa, a um não saber o que faço, desvio ou não o olhar, sorrio, desmaio - a uma atitude estranhamente normal, que é definida por não se sabe bem o quê.
Ela continuou a sorrir, enquanto olhava para ele, ele olhava não para ela, mas para o sorriso. Os seus lábios conseguiram, na melhor das hipóteses, dependerá aqui sempre do observador, um esgar estranho, entre o sorriso tímido e uma expressão de surpresa.
Avançou até ela,
Olá, Leonor.
Oi, João. Tudo bem?
Esta troca de comunicação entediante e comezinha continuou durante mais alguns momentos. Ele ia ter uma opção, era optara por outra cadeira.

Sentado na sala, sem ouvir uma única sílaba debitada pelo professor, João pensa em Leonor. Há dois anos que a conhece, falam aqui e acolá, sem grandes intimidades. João pensa no sorriso de Leonor e no que ele despertou em si.
Pensa nos dentes brancos, na beleza alegre que pela primeira vez deslumbrou na colega. Como começa o enamoramento?
Por vezes com sons gutorais.
Paradoxalmente, quando os enamoramentos terminam outros sons gutorais soam.
publicado por wherewego às 14:06

28.01.09
Passou por um antigo cliente, ele sorrindo-lhe disse-lhe:
-Ora, viva.
Sendo do contra, morreu.
publicado por wherewego às 10:45

O circo passava por imensas dificuldades financeiras.
Desesperado, decidiu clonar um clown.
publicado por wherewego às 10:43

05.11.08
Tinha uma voz tão monótona que um dia a própria voz adormeceu.
publicado por wherewego às 11:21

29.10.08
A caneta escorrega entre os dedos. Tenta mexer a mão, com sucesso. Agarra novamente a caneta.
Esta escorrega-lhe novamente entre os dedos.
A dormência desaparece rapidamente.
Encontra-se entre o temor e a curiosidade.
Agarra a garrafa de água com a mão. A dormência não volta. Com a esquerda desatarracha a tampa e bebe um trago.
Olha para a mão, belisca-a e sente o ardor.
Olha para a caneta e agarra-a com a mão esquerda. Faz uns rabiscos. Nada acontece.
Agarra novamente a caneta com a mão direita. "Automaticamente" a mão adormece.
Olha para a caneta, atira-a para o caixote do lixo. Senta-se ao computador e escreve o texto pretendido.
publicado por wherewego às 11:41

Hesito. A ponta da caneta vai sujando o papel, sem que uma letra ou palavra se distinga.
Tento que seja a caneta a escolher o caminho, que seja ela a pensar.
No entanto, os pontos, rabiscos e traços não ganham personalidade linguística.
Começo a passear mentalmente pelo alfabeto. Com que palavra começarei o texto?
E começarei com um verbo, um artigo ou um adjectivo?
Para quê perder tempo com o tamanho do texto se ainda não lhe descobri o tema? Ou que tipo de texto será?
Deixo a caneta a olhar para o papel, de cima para baixo.
publicado por wherewego às 11:37

01.10.08
Olhou para o local que tinha sido a sua casa nos últimos 15 anos.
Ali tinha passado toda a sua vida. Crescera, chorara, rira. Conhecia cada canto.
Olhando para a casa vazia pensava na distinção muito anglo-saxónica entre house e home.
Mesmo vazia aquela casa era mais do que uma casa.
Em frente a uma das janelas olha a rua em frente. Vê o Sr. Janeiro a passear o cão, o vizinho Frade a limpar compulsivamente o carro, vê a Dª Catarina sentada à janela, tirando mentalmente notas para a conversa com as outras velhotas, no café.
A sua casa, o seu lar não tinha só paredes, começava na rua, 50 metros acima, e terminava lá em baixo, na praceta. Começava no R/c e terminava no 3º andar. O seu lar começava nas caras que tinham um nome, e mesmo naquelas em que o ignorava.
O seu lar começava na vizinha que lhe abria a caixa do correio, com a chave dela (!), "Hoje tens uma carta!". Continuava na bola que era chutada pelo puto de cima, no som da aranha, a percorrer a casa, da irmã mais nova dele. Continuava nos amigos que lhe tocavam à porta para irem juntos no autocarro para a escola. O seu lar terminava ali.
A sua casa seria outra agora, noutro local, com novas caras, novos limites, novas manias. Demoraria tempo até ser novamente um lar.
Mesmo com os mesmos móveis.
publicado por wherewego às 11:51

26.09.08
-Olá!-...
-Sinto-me velho, hoje. Quase tão velho como tu. Velho, sem paciência, descarnado, sem pele.
- Deves estar velho mesmo. Descarnado? Com tantas peles penduradas?
-Sim, eu sei. Gordo, irascível. E velho, um velho de 48 anos. Com um filho que não conhece, que não percebe, que não vê. Um filho ausente, mesmo quando não sai de casa.
- E uma mulher que cada vez mais se afasta, foge, se esconde de ti.
-Tinha medo de o pegar, quando nasceu. Sabes? Parecia demasiado frágil, para um tipo sem jeito como eu. Para um tipo que partia copos todos os dias, copo, que partia um copo todos os dias. E olhar para ela, uma estrela naquele quarto. Sorrindo, cansada e dorida. Também de mim. Como se aquele raio que saíra dela podesse fazer-me brilhar. Chamuscou-me.
-Não sei se tem medo de ti, mas...qualquer dia não a encontras. Abafa-la demasiado.
- Como me hei-de dar com os outros, mesmo os do meu sangue se não me percebo a mim mesmo? Se não aceito quem sou. Se não gosto de mim...mesmo quando os outros gostam.
-Ela sabe que não sabes se gostas dela. Pelo menos, na maior parte das vezes.
- Ironia. Porra de realidade. Sentir o amor dos outros, o carinho e não saber retribuir. Evitar olhar nos olhos, ou olhando não saber sorrir, não me interessar pelo que dizem. Fartar-me do som das vozes deles, e ansiar pelo som da minha não voz, dos meus não pensamentos. Sorrir por não reagir. Ou reagir não agindo.
- ...
-Não dizes nada? Ou respondes afirmativamente, com o silêncio? Juntando-te a mim na minha opinião?
- Não consigo pensar contigo a falar. Não te calas. Aliás, é esse o teu problema. Falas sempre, mesmo quando não te ouvimos. Mesmo quando não pensas. As mãos não param, a respiração aumenta, o pé bate no chão, para cima e para baixo.
-Vejo um jovem de vinte anos, que mora na mesma casa que eu. Não gostava de o pegar em pequeno. Não tinha paciência para ele, para as perguntas, para os porquês, demasiado agarrado ao trabalho, ao desejo de ser melhor, aos jornais. à realidade. E ele perguntando, porquê, pai? Porquê?Andando, correndo, tirando a coisas do lugar. Vendo tudo com as mãos, e por vezes com a boca. Porquê, Pai? Lambendo, roendo e mordendo. Porquê?
-E ela, ali, a olhar para os dois. Sorrindo. Triste para ti, tentando compreender o que nem tu sabes explicar. Esperando que entendesses o filho que te deu.
- Mordendo uma caneta e ficando com a boca cheia de tinta. Cuspindo para o monitor. Metendo os dedos, e sujando a parede. Porquê, filho?
-Triste, quando o agarravas por uma orelha. Ou quando lhe davas uma ou duas palmadas, a chamavas, e colocando-o fora do escritório, fechavas a porta. Entre ti e eles.
- Que saudades desses momentos.
- Imaginas as lágrimas de um e de outro?
- E aqui estou eu, num quarto de hospital.
- E eles vêem visitar-te?
-Porquê?...Para quê?
publicado por wherewego às 12:05

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