Comprei há uns meses largos a caixa de dvds de José Álvaro Morais.
Traz as três longas metragens (O Bobo, Peixe-Lua e Quaresma), Ma Femme Chamo Bicho, documentário sobre Vieira da Silva, a curta metragem, documentário ficcionado, Zéfiro e alguns extras, filmografia, cartazes, fotos e conversas com os actores, por exemplo.
Adorei o Zéfiro, curta metragem sobre a nossa condição e localização, continuo a achar O Bobo um dos filmes portugueses mais interessantes que já vi, e não consigo deixar de gostar dePeixe-Lua, aquele em que a namorada quase adormeceu ao meu lado no cinema, filme tão diferente de mim em valores e sentido. Falta-me ver o Quaresma, no que diz respeito às longas metragens.
Aquilo que me cativa na cinematografia de Álvaro Morais é a justaposição de níveis de interpretação, a utilização de flash-backs e a interposição de outros discursos na linha fundamental do argumento. O Bobo é um excelente exemplo, e filme também, do que se diz. Pegando em O Bobo, a peça de teatro, o filme lê e interpreta a mesma, ou obriga-nos a interpretá-la, à vista do Portugal da altura. Deixamos de saber o que é peça e o que é filme, porque os dois se juntam, se completam, se fundem, interpretando-se mutuamente.
A música de Peixe-lua é um gozo, belíssima e o filme é "brutal", pouco simplista e objectivo (demasiada e obscuramente complicado na ausência de relação entre tudo o que vemos), porque os sentimentos também o não são, e as escolhas das personagens são delas e não nossos, e esse é o tema do filme. Somos intérpretes dessas escolhas, espectadores, ao contrário dos filmes americanos em que já sabemos quais e que tipo de escolhas serão feitas.
Claro que o ponto de partida de Peixe-Lua, um triângulo amoroso, lugar aparentemente comum, não o é. Se de um lado temos a João e o Gabriel, do outro temos José Maria (e também o outro irmão), sendo que Gabriel se torna o objecto de amor de todos os irmãos.
É este relacionamento e a tentativa (individual de cada personagem, activa e passivamente) de descobrir maneiras de o levar avante, as escolhas que cada um tem de fazer que alimentam o filme, embora todas as personagens saibam ( e é isso que os mata, que os define, que lhes dói) que vão ficar (ou continuar) sós. A solidão alimenta o filme, é a base de todo o filme, ainda que as personagens andem continuamente juntas.
O filme é alimentado por um tempo mítico, por uma leitura de El Público de Garcia Lorca (excerto no final do post), que o alimenta e tenta explicar os relacionamentos entre as personagens principais.
Há decisões a serem tomadas, o passado alimenta toda a narrativa, matando todo o presente, e é disso que as personagens não vão conseguir libertar-se.
Peixe-Lua é fragmentário porque as suas personagens são elas mesmas fragmentadas, cada uma delas vai tentar procurar o seu futuro, colar-se, para descobrir que isso não é possível. Vão ficar sós, porque se alimentam de um passado demasiado pesado, incompreensível e vivido.
O final, em que José Maria convida Gabriel para jantar, e este responde com um até amanhã é sinal de que as personagens vão continuar sós, ainda andam à procura de algo que os complete, mas estão já (definitivamente?) quebrados.
- se eu fosse uma formiguinha... o que serias?
- seria terra
- e se eu fosse terra?
- seria água do ribeiro
- e se eu fosse a água de um ribeiro?
- seria um peixe-lua
- e se eu fosse um peixe-lua?!?
- .... seria uma faca bem afiada rasgando-te durante 4 longas primaveras!!!